9.12.06

LÁGRIMAS DO OCASO

Crônica publicada no Jornal Vale dos Sinos (VS), São Leopoldo-RS, 30 de novembro de 2006

A tarde aquecia a colina de tal modo que se poderia imaginar Dante regozijado. Este calor, no entanto, não era suficiente para abreviar o cotidiano faminto de presas humanas. A vida transcorria tal qual o ritmo das águas traiçoeiras, paradoxais, uma certa superfície branda e uma profundidade caudalosa. Tudo era inesperado, menos o tempo marcado pelo relógio, indicando o ocaso das horas. Esse relógio trabalha com a paciência de um ourives e com a determinação de um revolucionário.
A criança que não se incomodava com o calor vivia seu tempo descobrindo as incertezas e investigando novos modos de brincar. O velho, na solidão acolhedora da sua rede, retomava o tempo na sua lembrança e narrava para si mesmo as aventuras vividas, no que havia de êxito e de fracasso. Sentia-se, no entanto, com a tarefa melancolicamente cumprida. Olhava a criança na sua tagarelice e meditava sobre o que seriam os caminhos que a vida, em sua surpresa recatada, reservava para a vida de um menino entregue ao sol e à plenitude da própria infância. Uma entrega própria da meninice, quando está ainda inocente diante das avalanches do mundo.
De repente, tudo isso é quebrado com a súbita presença de uma interrogação: que horas são, vovô?
Como? Por quê desejaria uma criança saber as horas? O que faria com tal indicação precisa do tempo? Estaria interessado em brincar de modo regulado, no limites estabelecidos pelas horas? Ele, quando menino, olhava as cores do dia e se situava no tempo, sem relógio. Nunca houvera feito tal pergunta: que horas são?
Não lhe ocorrera, por certo, que alguém pudesse responder essa pergunta com precisão, e, isso não era tão importante, naquela época. O relógio é um artifício que veio com o progresso, para auxiliar outros ordenamentos, para disciplinar a vida na cidade grande ou para que se entenda um pouco os invernos e as primaveras, na singularidade dos seus dias. Esta medida não regulamentara seu tempo de menino.
A brusca e inesperada pergunta pelas horas, movimenta no coração do avô uma saudade guardada na memória, a saudade de uma vida de folguedos, poucos mimos, mas uma fase boa de ser lembrada.
Inclina-se, agora, o velho Ulisses, para dentro de seu tempo e põe-se a imaginar como seriam as saudades dos demais velhos, repousados em suas redes, à sombra de antigas árvores, talvez, sem meninos para lhes perguntarem pelas horas, para lhes resgatarem essa noção de tempo.
Eis que surge novamente vibrante a pergunta de Pedro: vovô você está me ouvindo? Que horas são? Posso brincar mais um pouco? A voz do pequeno garoto desperta Ulisses e como uma âncora retira seu pensamento do turbilhão das épocas. Uma cigarra zumbe e Pedro se ocupa em segui-la. Desiste de seu propósito e logo resolve insistir na pergunta. Aproxima-se do avô, cujos olhos cerrados leva o menino a pensar que ele dorme. Ulisses sonha, sem dormir. O barulho dos pés infantis, nas folhas secas, produz o som necessário para o despertar da viagem mágica que o velho Ulisses realizou ao seu passado, ao seu mundo.
Seu devaneio interrompido na distância das horas, acorda em seu corpo emoções contidas e percebe algo que dificulta sua visão... Olha o pequeno Pedro e logo repousa seu olhar sobre o outro horizonte da colina, sentindo seus olhos úmidos pela voragem do tempo, sem retorno. Chora a história, no ocaso das horas.

17.11.06

Rimas

Rimas

Eu rimo contra as rimas
enredadas nos versos.

Eu canto contra os cantos
harmoniosos, arrumados.

Eu ouço contra o barulho,
quando me recolho.

Eu vivo contra o tempo,
concluindo algo em mim.

Eu grito, quando dói
o meu silêncio.

Eu calo ao ouvir a voz
do nada, em seu açoite.

E mergulho no meu sonho
com meus medos.

E continuo o avesso disso tudo.

Cecilia Pires

Montanha/Itália

19.9.06

O Povo e os Partidos Políticos

“Eu gostaria de amar o meu país, amando, ao mesmo tempo, a justiça. Para ele não desejo uma grandeza qualquer, tal como a do sangue ou a da mentira. É fazendo reinar a justiça que eu quero fazê-lo viver” (Albert Camus).


As circunstâncias nacionais estão a exigir uma reflexão sobre o significado da organização social e política, na construção da democracia.
Rousseau, filósofo francês do século XVIII, escreveu O contrato social, obra por demais conhecida, que trata fundamentalmente, da soberania popular na manutenção de uma nação vigorosa. Nação onde o direito é a força que dimensiona os compromissos recíprocos entre os homens. Ao falar da importância do direito para os acordos estabelecidos no convívio democrático, afirma o filósofo: “Existirá grande diferença entre submeter uma multidão e reger uma sociedade”. E, mais ainda, insiste “Antes , pois, de examinar o fato pelo qual um povo elege um rei, será útil examinar o ato pelo qual um povo é um povo, porque sendo este ato necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da sociedade”.
O filósofo inspira o debate sobre a importância do processo das escolhas e alternativas que se apresentam aos encarregados de reger a coisa pública, segundo as normas do pacto social. Pacto este que precisa ter suas regras apresentadas, debatidas, aceitas e respeitadas por todos no exercício público da cidadania.
A partir desse princípios nos remetemos para o momento atual, em que estamos a vivenciar o instante que antecede as eleições nacionais. Pensamos na vontade geral que não é a vontade de uma multidão manobrada, mas a vontade de um povo organizado. Qual será a vontade geral do povo brasileiro no que se refere à ação do Poder Central? É possível a união do poder singular de algumas lideranças com o desejo universal do povo?
Pensando na política de alianças, já tradicional nos acertos eleitorais, é possível compreendermos a perplexidade do imaginário social, no que diz respeito aos rumos da nação. Hoje, a grande maioria da população está num grau de tensão e apreensão, devido às idiossincrasias da política e dos políticos. A multiplicação de siglas partidárias e a fragmentação interna de alguns partidos aparecem para a opinião pública como a face frágil, desorganizada e inútil de qualquer agremiação partidária. Os ranços doutrinários, os acordos de gabinete, as trocas de favores, as disputas pelo domínio e pela liderança afetam a saúde da organização político-partidária.
Não estamos dizendo que os partidos políticos não sejam importantes. Eles são mesmo necessários na organização e nos avanços das lutas da sociedade civil. O que estamos analisando é a dificuldade do povo em confiar no partido político, dadas as situações apresentadas. O partido tem suas contradições, o que faz parte do processo dinâmico de qualquer organização. Não estamos reivindicando a evidência e a clareza cartesianas. O que não pode acontecer num partido político, que se quer sério, é o descompromisso com seus próprios princípios, a decisão de cúpula e a conseqüente descredibilidade ética e política.
Se o povo é o fundamento da sociedade organizada, o sujeito, antes de ser um mero eleitor, é um cidadão. Tem o direito de ser ouvido. Não pode ser usado como cumpridor de mandamentos definitivos. Por mais iluminada que seja qualquer liderança política, não pode se julgar intérprete do pensamento e do sentimento do povo, sem ouvi-lo. Para que haja garantia de seriedade com o povo, que constrói a nação, na sua luta diária de assalariado, é necessário lucidez e maturidade por parte das lideranças partidárias.
Como é possível ultrapassar a simples caça ao voto? Quais as condições que tem um partido, que se quer sério e maduro, de permanecer construindo com o povo as formas de organização de suas lutas, passado o período eleitoral? Como responder ao desejo de que o povo tem de ser reconhecido por aqueles que ele fez chegar ao poder? Como poderá o partido entender que o povo é o sujeito de soberania e que sem ele o poder é prepotente?
Essas questões aparecem no horizonte da reflexão política, no momento em que a vida de milhares de brasileiros será atingida, via reformas estruturais e conjunturais, decorrentes dos resultados eleitorais. Este é um momento de absoluta responsabilidade histórica e política, cujo significado depende do esforço de todos nós, pois não queremos mais ausência do Direito, que significa a ausência da Liberdade.
A responsabilidade cívica dos partidos políticos está, portanto, a exigir mais do que uma política de alianças, mais do que uma mesquinha caça aos votos. A atitude de maioridade política está a querer seriedade no pacto social. Seriedade que movimente os partidos políticos no rumo de uma caminhada histórica de lisura e probidade, em que a ideologia não se macule com as estratégias das siglas de aluguel.
O povo não se contenta, apenas, com um novo inquilino no Planalto. Está querendo ser ouvido e respeitado; quer um momento diferente para a nação. Para viver o momento atual e afirmar uma nova etapa é preciso que os partidos políticos tenham presente, como quer Rousseau, que o povo não seja uma multidão submissa, mas uma vontade geral soberana e organizada.

18.9.06

Lançamento de livro

Como parte da programação da Semana acadêmica do curso de Filosofia da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), foi lançado na manhã do dia 15 de setembro de 2006, no Campus I, o livro Desafios éticos e políticos da cidadania: ensaios de ética e filosofia política II, organizado pelos professores Jovino Pizzi, da UCPel, e Cecilia Pires, da Unisinos. Na ocasião, a Professora Cecília Pires proferiu uma palestra sobre o tema Soberania em Rosseau.A obra é uma coletânea do grupo de trabalho (GT) Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, publicada pela Editora Unijuí. Além de representar a partilha das discussões, pretende ser um instrumento no debate filosófico em torno dos desafios éticos e das potencialidades políticas para uma sociedade em processo de globalização.
Para os organizadores do livro, o sentido criador da subjetividade é o que possibilita a liberdade. Daí a dinâmica para enfrentar os desafios postulados pela cidadania neste milênio.
Em 2003, do mesmo GT, foi lançado, pela mesma editora, o livro Vozes Silenciadas: ensaios de ética e filosofia política, organizado pela Professora Cecilia Pires.

3.9.06

É possível uma via ética para superação da violência?

É possível uma via ética para superação da violência?

Cecilia Pires

1. INTRODUÇÃO

Minha fala irá abordar o problema da violência pelo ângulo da Ética e da Filosofia Política. O lugar do qual eu falo situa a perspectiva do meu olhar, do modo como eu vejo o mundo e do horizonte, a partir do qual os autores que eu trabalho investigam o mundo. Este é o ponto de partida. O ponto de chegada é uma inquietude.
A idéia desse texto se circunscreve nos limites da reflexão ética e política acerca da violência. A violência sempre resulta em vítimas, aparece como a ausência ética. Há olhares que produzem vítimas e esses olhares podem ocorrer na esfera da política, quando essa se afasta da ética.
A idéia da violência se desdobra em dois movimentos. Um que se refere a uma dimensão macro, como componente político da estrutura do Estado e das relações nacionais e internacionais. Aí se instala desde a coerção física e moral, passando pela hegemonia dos recursos econômicos e pela supremacia da informação, até o controle ideológico nas mais variadas aparições.
Outro, diz respeito a uma intimidade cotidiana com a violência, de tal modo que os sujeitos temem uns aos outros ou experimentam situações aflitivas na esfera da subjetividade, por situações de necessidade, de carência, nas relações concretas que vai desde a fome, o desemprego, a insegurança, vítimas potenciais de seqüestro, de crime organizado, distanciamento dos bens da cultura até as quebras subjetivas por relacionamentos fragilizados e pela ausência de uma vida prazerosa. A alegria e a felicidade se desenham como lacunas.
Estamos vivendo um tempo convencionado como marco de um tempo civilizado. E continuamos atormentados pelas experiências absurdas como a violência. A violência é um traço da cultura humana. Não há uma natureza violenta, há uma condição humana marcada por relações de violência e dominação. A violência pode nos parecer absurda, mas ela faz parte do mundo humano.
Hannah Arendt analisa:
A principal razão em função da qual a guerra ainda está entre nós não é nem um secreto desejo de morte da espécie humana, nem um instinto incontível de agressão, e tampouco, por fim e mais plausivelmente, os sérios perigos econômicos e sociais inerentes ao desarmamento, mas o simples fato de que nenhum substituto para esse árbitro último nos negócios internacionais apareceu na cena política. Hobbes não estava certo quando disse: “Pactos sem a espada são meras palavras?” (Sobre a Violência,1994,p. 14)

Temos dificuldade de lidar com o que nos parece absurdo. Fazemos a tentativa de lidar com o não-racional. E por mais que usemos toda a nossa carga racional para tentar entender os acontecimentos, lançamos mão de outras explicações, lidamos com os porões de nossa mente e buscamos “explicar” as tensões atuais como interfaces necessárias que sustentam a lógica das nossas invenções.
Fala-se de faces da violência. Terá a violência faces? Parece que face é um termo delicado para ser referido ao que é violento. O olhar faz registros, estabelece diálogos, confere regimes de verdade, produz culpas, afaga corpos, destrói sujeitos e civilizações. O rosto revela, escuta, fala, produz significados, evidencia silêncios, indica questões. O rosto tem um olhar. O olhar tem um rosto. E o sujeito do discurso porta ambos, olhar e rosto o traduzem.

2. Sujeito, olhar e violência
Por quê pensar ética e violência? Que relações aí se encontram? Os costumes que a humanidade fez para si mesmo produziram regras que assumiram o ethos, a identidade do humano, que se tornou ético e construiu a Ética.
Pensar ética e violência na trama do tecido social requer que se faça referência ao sujeito e aos olhares que os sujeitos fazem uns aos outros, como construção e como dominação. A violência recusa o olhar de acolhida; seu objetivo é a dominação. O cenário de violência desenha o olhar de rejeição, de temor, afugenta o olhar de encontro, de recepção.
Sujeito e ética articulam-se no procedimento de uma possível integração entre olhar e rosto, na medida em que o mundo construído desafia os olhares éticos.
O sujeito realiza seus desejos e projeto ao realizar sua subjetividade na troca intersubjetiva. A ética necessita desse espaço da intersubjetividade. A rigor, os governos e as representações da governabilidade poderiam realizar essa intersubjetividade se fizessem uma escolha por valores éticos, pela não-violência.
Pode-se estabelecer um conjunto de situações que modelam a ação violenta. E recorremos a Arendt, quando indica:

A própria substância da ação violenta é regida pelas categorias meio-fim, cuja principal característica, quando aplicada aos negócios humanos, foi sempre a de que o fim corre o perigo de ser suplantado pelos meios que ele justifica e que são necessários para alcançá-lo. Visto que o fim da ação humana, distintamente dos produtos finais da fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, os meios utilizados para alcançar os objetivos políticos são muito freqüentemente de maior relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos. (p. 14).


E colocam-se questões:

§ Colocar pessoas segregadas num campo de concentração é produzir vítimas. Em nome de quê isso é feito?!
§ Torturar, matar os pensam diferente dos regimes vigentes é negar a diferença, tornar a tolerância intolerável. Em nome de quê isso é praticado?
§ Recusar o outro naquilo que lê tem de incômodo para mim, seja porque me pede pão, seja porque requer afeto, seja porque abala minhas certezas é produzir vítimas. Por quê há essa prática?
§ É possível pela ética superar essas recusas? Denunciar as vilanias? Atuar sobre as ações violentas?

É importante sublinhar o fato de que os dados da cultura evidenciam a capacidade humana de elaborar juízos de valor, evidenciar as competências comunicativas, administrar os conflitos, construir relações de partilha e de solidariedade. Isso denota as antinomias da subjetividade. As discriminações e aviltamentos destacam certos tipos de olhar, o do verdugo, o do carrasco, o produtor de vítimas. Pode, no entanto, ocorrer outros olhares o de quem investiga ou interroga para conhecimento, o daquele que busca o entendimento da singularidade, o olhar que protege e abriga no desconforto do medo produzido pela violência, o olhar que possibilita curas, o olhar de cuidado de um sujeito com outro sujeito, pois entenderam as próprias singularidades.
É possível pensar que o temor diante do inesperado pode produzir um conjunto de reações que preparam para a violência. E aqui o olhar prepara o rosto para o que será vivido, cuja expectativa pode ser aprisionadora do sujeito.
Finalmente, desejo assinalar que a escassez que o outro vive violenta a estética que posso ter da vida. O outro me incomoda demais na sua escassez e exige que eu me ocupe de sua escassez. Isso me desinstala da minha paisagem tranqüila, na qual me escondo do olhar lacunar do outro.
É uma escolha se desejo o acolhimento ou a recusa, pois minha ação influi na ação do outro. Então é possível pensar uma via ética para a superação da violência, se ao invés do desamparo decido caminhar em direção ao cuidado, ao acolhimento. H. Arendt diz que aquele que nasce deve ser acolhido e que o maior evento da condição humana é a natalidade. Desse modo, pode-se olhar os novos que chegam no mundo com olhares de fraternidade, na medida em que estamos todos na mesma condição como humanidade.

27.8.06

MINHAS PALAVRAS

Eu me perdi
nas minhas palavras.
Elas não mais me pertencem.
Foram apropriadas
quando as pronunciei.

Construi com palavras
outros mundos.
Com palavras
espantei meus demônios.
Nas palavras
vivi a lucidez.

As palavras levaram
minha liberdade.
Nas palavras embarquei
para outros céus;
por palavras condenei-me
à alteridade.

Eu me encontrei
no meio das palavras.
No meu destino
tracei muitas palavras.

Com palavras
busquei a minha voz.
Habito agora nesta festa
das palavras,
mas... a sós.

(Do livro Olhares Poéticos)

Eu e o meu neto, Andrei