11.11.08

Registros

Estive em Santiago, na Feira do Livro, lindo momento de reencontros, onde a amizade e alegria andaram de mãos dadas. Rever pessoas amigas, lugares, paisagens; lembranças e saudades re-vividas, onde a memória e a história ocuparam o espaço e o tempo.
Dizem que o sujeito precisa tocar suas raízes para se sentir localizado no mundo, na cultura, tocado por sua própria vida. Pois assim me senti, de volta à minha terra. Meu olhar de hoje se enlaça com meu olhar de menina e eu percorro as ruas, os lugares com a ternura e o silêncio, sentimento e atitude próprios de momentos solenes.
A filosofia me ensinou a escutar e a refletir e além da profissão, tornei a escuta e a reflexão atitudes de vida. E nessa viagem, fiz também uma viagem para dentro de mim mesma, quando refleti sobre tudo o que ali comecei a viver e aprender, na cidade em que nasci. Meu nascimento biológico e também meu nascimento social. Entrei na vida derrubando muros, para abrir caminhos.
Ao visitar o túmulo dos meus pais senti esta emoção de quem toca a própria raiz, e, sabe que tudo tem um começo e um fim, e que somos partículas desse universo cósmico, cujas energias se entrecruzam de forma que ainda não sabemos ou não compreendemos. Somos natureza e cultura, somos sujeitos do tempo e da palavra. Somos vida!
Saber avaliar ganhos e perdas está na dinâmica do processo de nossas vidas. E como é difícil lidar com perdas! Estamos preparados para a conquista, para o sucesso, para a festa, temos resistência a lidar com fracassos; o luto e a dor não nos agradam, o que é compreensível, pois, como sujeitos de passagem, queremos o máximo da alegria e o mínimo da dor. Enfim, os gregos nos falavam dos contrários, como fundamentais no movimento da vida, temos o frio e o calor, o dia e a noite, á água e o fogo.
Mas queria registrar esta visita a Santiago como uma hora boa na minha vida, uma hora de festa e de alegria. O olhar da mulher adulta percorre os passos da criança e verifica que a caminhada que se faz, mostra uma escolha de vida, um projeto de liberdade, que implica em dizer sim e dizer não.
Gostei de viver para ver o que vi de mim mesma.

2.11.08

A propósito da experiência da dor. Uma leitura do conceito de “vida ferida” de Th. Adorno.

O exame da história humana, especialmente na versão que nos oferece a literatura grega, faz emergir ao cenário do mundo os homens esmagados pelos desígnios cósmicos, regidos por divindades cujas determinações eles são impotentes para mudar. Estão, portanto, à mercê da autoridade dos deuses e resta-lhes cumprir as determinações da vontade soberana, pois ninguém foge ao que está prescrito.
Ulisses, Prometeu, Édipo, Sísifo, Antígona são alguns dos personagens cujas tragédias pessoais movem suas vidas. Embora resistam, acabam por cumprir o desiderato já antecipado pelos oráculos em suas sábias falas.
Por quê a humanidade está afetada por males? A explicação pode estar no descumprimento de uma promessa. Epimeteu recebe o presente de Pandora e (esquecendo-se do que prometera ao irmão, Prometeu) abre a caixa; e eis todos os seres humanos mergulhados nos males que saíram de uma jarra do Olimpo. No entendimento mítico, os males não são gratuitos. Resultam da punição necessária que os deuses realizam sobre os que ousam desafiá-los. A fronteira entre a servidão e a rebeldia é tênue, na vida dos humanos, e a mediação entre o sagrado e o profano passa pelos paradoxos da inteligibilidade do mundo e da vida.
A simbologia dos mitos gregos, expressão de um entendimento do mundo, esboça projetos de vida, alimentados pelo desejo de autonomia do indivíduo. Esse desejo confronta-se com a figura da autoridade, cuja afirmação é menos de governabilidade e mais de punição. Isso evidencia a tensão existente entre a autoridade, que exacerba suas ações, e o sujeito, que se pensa livre e insubordina-se diante da exacerbação da autoridade. É evidente que a narrativa simbólica é prenhe de significações, além da metáfora. Busca explicar a radiografia de um modelo, a partir do princípio da autoridade e da lei.
O que se constitui num problema para a humanidade e revelador de sua decadência é a deposição de uma racionalidade assentada em virtudes, substituída pela racionalidade baseada em vícios. A idéia de que os homens vitimaram os homens, construindo instrumentos de suplício, encontra vários registros na história, cujos requintes atestam a fragilidade da espécie que se tornou sapiens. Talvez se deva dizer que esse é o primeiro fracasso do esclarecimento.
Ao inaugurar o poder, o homem inaugura a dimensão do limite na vida coletiva. Isso não requer, necessariamente, a experiência da dominação e do sofrimento, embora os registros históricos sejam ricos de relatos de torturas, indicadores de que a autoridade abandonou o bom senso pela totalidade violenta. E o artefato jurídico-político chamado Estado é um dos principais atores desse cenário trágico. Os reis, os generais e os ditadores, com seus instrumentos de punição, não são menos algozes do que Zeus, torturador de Prometeu.
Edith Hamilton escreve sobre Prometeu: “Seu corpo estava acorrentado, mas o espírito estava livre. Recusava submeter-se à tirania e à crueldade”. E, certamente, o que mais enfurece a razão totalitária e seus epígonos é a resistência da vítima, cujo sofrimento não a torna covarde diante da vontade de potência das autoridades. Então, somos racionais? Sim, apesar de matarmos, aniquilarmos e destruirmos o outro humano, que nos incomoda e que se torna um empecilho para nossos projetos...
Adorno no seu livro Minima Moralia: Reflexões da Vida Danificada (1951) apresenta uma tese que contrapõe a reflexão de Aristóteles, Magna Moralia. Adorno continua seu trocadilho fazendo menção ao "conhecimento triste" em relação ao argumento d’ "o Alegre Conhecimento", de Nietzsche. Pode-se entender essa como uma obra de exílio, em que constata e registra, as agruras da vida lesada, ferida, da vida marcada pela dor. É um texto originalmente escrito para o qüinquagésimo aniversário do seu amigo e colaborador Max Horkheimer.
"A vida não vive", declara o epigrama de abertura do livro. Adorno ilustra isto em uma série de curtas reflexões e aforismos, relatando uma espécie de crônica de um cotidiano aflito por uma sociedade industrial aniquiladora. Seu relato detém-se em mostrar a dificuldade de vivermos uma boa vida, porque a sociedade se tornou desumana, desqualificando a vida.
Há uma espécie de amargura ou nostalgia no espírito de Adorno ao escrever esse livro, ao considerar desde a natureza subversiva de brinquedos, passando pela desolação da família até decadência da conversa. Adorno mostra como as menores alterações de comportamento cotidiano podem ser comparadas com a maior parte dos eventos catastróficos do século XX.
Seria possível considerarmos que sua lente ao olhar o mundo se agiganta pelo sofrimento, como refere um dos seus aforismos: "A lasca no seu olho é a melhor lente de aumento". Ou seja: a experiência da dor traz para o sujeito uma capacidade de ver melhor o mundo quebrado, a vida ferida. Mas será só isso? Constatada essas questões, que fazer? Talvez essa questão não se apresente para Adorno, ou para os frankfurtianos, na medida em que eles abandonaram a idéia de utopia positiva, pelo negativo do processo. Na Dialética do esclarecimento, no Excurso II, lemos que “os fatos pertencem à praxis”; poderíamos, então, perguntar: como entender ou realizar a práxis, a partir da vida ferida?!
O argumento de Adorno sobre fragmentos apontando o caminho da desumanidade pode ser igualado a seu raciocínio acerca das sobras do espelho esmagado da filosofia. Uma espécie de pós-filosofia trabalhando contra o "todo falso" da filosofia propriamente dita. Minima Moralia se apega à visão judaico-cristã-Iluminista de resgate, que é designada o único ponto-de-vista válido com o qual engaja um mundo profundamente perturbado. (wikipedia). Ao aproximar a “luz messiânica” de críticas sobre uma paisagem de consumada negatividade, Adorno tenta "projetar negativamente uma imagem de utopia”.
Seu questionamento ocorre face ao projeto grego de Ciência, que era a busca da boa vida, tornando-se na Modernidade uma Ciência de controle e de formalização da vida, em que aparece uma vida desqualificada, cujo maior algoz é a idéia de progresso.
É importante observar que os filósofos que se sensibilizaram pelas vítimas do progresso e das experiências totalitárias fizeram seus registros, a partir de uma espécie de desencanto com a razão, uma razão que falhou face aos imprevistos das governabilidades.
Salvo melhor juízo, percebe-se uma diferença de olhares entre alemães e franceses, neste particular, do pós-guerra. Os alemães dedicam-se a registrar ou condenar as experiências aflitivas da humanidade, enquanto que os franceses, além da denúncia, participam de uma espécie de engajamento político face aos aniquilamentos da subjetividade. Destacaria, aqui, Sartre, na sua particularidade de cidadão francês, Camus e Derrida, como afrancesados, por adoção, envolvidos com uma contingência mais aguda.
Há uma significativa expressão de Adorno, em Minima Moralia, ao afirmar que existe uma linha reta que vai do estilingue à bomba de megatons, mas não há nenhuma que vá da barbárie à civilização. Essa afirmação procura atestar uma crítica à racionalidade, evidenciando que a dominação pela ciência e tecnologia é processual, na dinâmica do progresso, orientada pela razão instrumental, enquanto que a dominação na experiência histórica da humanidade se apresenta como momentos cíclicos, podendo a humanidade, na análise própria de Benjamin, voltar à barbárie a cada momento do tempo.

*** Na questão própria da categoria da barbárie, podemos mencionar os sentido do termo ao tempo do Império Romano, quando bárbaros eram os não civilizados, os não participantes da civitas da vida civil. Logo, a barbárie indicada pelo texto da Mínima Moralia não era aquela da simples oposição à civilização, mas uma barbárie sofisticada pelo uso instrumental da razão, que desqualificou a vida, ferindo-a no seu âmago, naquilo que contempla o conceito de emancipação.
Se pensarmos a sociedade civil como o outro do Estado, podemos entendê-la em uma outra dimensão. Não apenas como um segmento social, articulado na perspectiva de adesão a normas, mas como um lugar cuja dinâmica trabalha a moralidade esquecida pelo Estado. Os sujeitos da sociedade civil não exercem as funções da governabilidade, ainda que exerçam funções políticas. A cidadania pauta-se por convicções, por avanços e recuos face às contingências vividas. Temos exemplos desse portar-se da sociedade, na história do processo civilizatório. Presenciamos um recuo da sociedade civil quando o Estado apresenta-se demasiado autoritário sobre seus grupos, com a intenção clara de solicitar apoio, quando utilitariamente precisa da legitimação e do reconhecimento de um coletivo maior. Mas, também, podemos registrar os avanços dessa mesma sociedade ao enfrentar as decisões prescritivas da governabilidade, exigindo o respeito à condição humana.
Aqui podemos trazer a contribuição de Hannah Arendt, cuja experiência de exílio se assemelha a de Adorno, ainda que eles não se aproximem nas formas práticas ou teóricas, por razões da vida concreta.
Para Arendt, a política tem uma significação necessária para a vida humana, pois é o lugar onde o homem aparece, é o espaço público que efetiva a experiência da liberdade e da vida civil. Tudo aquilo que interdita o espaço da política pode comprometer o futuro da humanidade, na medida em que a política é o vir-a-ser-mundo. É a política que permite o nascimento do mundo. É lógico que tudo aquilo que avilta o espaço desse aparecer do humano impede a preservação da herança; neste caso a violência é a derrota lógica do poder, porque impede a organização da vida civil; aí reside sua denúncia ao totalitarismo, como expressão da barbárie, enquanto o desaparecimento da política.
O problema do totalitarismo é que ao eliminar a liberdade elimina o homem, não permite um novo começo, um novo nascimento e isso é a barbárie. Quando o terror aparece já não há mais adversários, só vítimas. A lei se torna a vontade de um, do Führer, que é móvel, que rompeu com a lei.
Uma sociedade civil organizada postula a justiça face às situações que a agridem na sua plenitude e condição originária. É o aparecer das organizações grupais e coletivas, articuladas pela teia da intersubjetividade, posicionadas contra procedimentos degradantes, aniquiladores da subjetividade.
Eu imagino que não ficaremos imunes a concepções que nos emocionam, que dirigem nossas vontades, que apelam para nossos raciocínios, porque esse é o nosso modo de gênero e de espécie. É a forma como aparecemos no tempo e no espaço. Mas temos que ficar atentos para podermos ser mais alegres e ousados. Ou seja, será preciso revisitar as situações vividas, para aprendermos que o mercado por si só não se mantém, se as subjetividades não recorrerem a ele. Para a Filosofia é essencial mais dúvidas do que certezas, pois do contrário ergueríamos um monumento à infalibilidade das interpretações.
Busco, ainda, nesse tempo, a presença forte dos motivos éticos, das razões das escolhas humanas e, por isso, não apenas lamento a história que vivemos, como um lamento de desespero. Entendo que a inserção do sujeito no mundo vivido é a forma da vida ativa, pois viver é correr riscos e aprender com a história o que serviu de interdito para a humanidade.
Se não quisermos mais holocaustos, temos que decidir a forma de impedi-los, pois os aniquilamentos continuam e não apenas um ato de vontade sustará tais círculos de fogo. É preciso acreditar em novas escrituras da história da humanidade, sem repetir tantos desacertos. Para isso é preciso refletir sobre o que fizemos e estamos fazendo,conforme reitera H. Arendt.

5.8.08

IX CORREDOR DE LAS IDEAS

Todos os caminhos da América do Sul conduzem ao Corredor. É uma Grande Corrente, simbólica, especial, o "Corredor das Idéias". Este é um evento que ocorre anualmente nos países do Cone Sul, na franja meridional do Continente.
Este ano o "Corredor de las Ideas" aconteceu em Asunción, Paraguay, na Universidade Católica. Edição número nove, com o tema central "Enseñanzas de la Independencia para los desafios globales de hoy. Repensando el cambio para Nuestra America", reuniu pensadores, professores, pesquisadores dos cinco países que se congregam em torno do evento – Argentina, Chile, Uruguay, Paraguay e Brasil, nos dias 23, 24 e 25 de julho.
Prepara-se o X Corredor para o ano de 2009, em Montevideo, Uruguay, como prelúdio para a festa hispânica do Bicentenário da Independência, que ocorrerá na Argentina em 2010.
Dois grandes objetivos do Corredor:
  • Fomentar estudos sobre pensamento e cultura latinoamericanos;
  • Fomentar a criação de redes intelectuais que articulem instâncias universitárias, tanto governamentais como da Sociedade Civil.

18.5.08

A MENINA ESQUECIDA

Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade dos olhos de um pai
Quero a alegria, muita gente feliz
quero que a justiça reine em meu país.
(Milton Nascimento e Fernando Brant - Coração Civil)




Esta é uma história do cotidiano da violência neste país de grandezas geográficas e pequenezas morais. Uma menina foi “esquecida” na prisão de Abaetetuba, no Pará, no Norte desta terra continental.
Esquecida por quem? Quem sabe de sua vida? A menina violada na prisão aguardava o quê? Esperava que tipo de determinação da Justiça? Estava sob os cuidados de qual autoridade?
Quem embalou essa menina quando nasceu? A quem contou seus segredos e sonhos de menina-moça, antes de ser jogada na prisão paraense, como punição por seu delito? Quem a ouviu? A juíza? A delegada? O conselho tutelar? As instâncias do poder político e do poder jurídico? O que se sabe é que um outro prisioneiro foi o único que se sensibilizou diante desse quadro dantesco; ao sair da prisão denunciou a situação da menina vitimada na prisão. Ele a ouviu, ele exerceu sua cidadania de forma solidária. É possível que não lhe façam nenhum reconhecimento e que continue esquecido às margens da vida, mas nós não podemos esquecer seu gesto, sua ação moral.
Os que a violentaram devem ter ouvido seus gritos, seus pedidos de socorro, sua rebeldia e finalmente seu silêncio. A menina deixada ao sabor de uma sorte sem padrinhos tem apenas 15 anos de idade. A menina-mulher que serviu de manjar vampiresco aos seus algozes estava num lugar guardado por autoridades que deveriam protegê-la e preservá-la para que a Justiça se efetivasse.
Seu nome? Não interessa. Sua idade? Parece que também não conta. Seu pai e sua mãe? Intimidados, submetidos às ameaças dos que podem e fazem o registro do poder naquela região, ficaram à espreita de que a filha estivesse num lugar seguro.
O ultraje da menina amazônica é o ultraje de todos nós, brasileiros que desejamos a materialidade ética na esfera pública. Nossa indignação de sujeitos livres, mulheres e homens, não pode se calar frente ao descaso como essa anônima menina foi tratada na prisão de Abaetetuba por quem deveria cuidá-la, em nome da lei e da Justiça.
E a lei para que serve, senão para proteger os sujeitos em quaisquer condições?! A Justiça não está encarregada da moralidade pública? Quem é responsável pelo que aconteceu no Pará, na nebulosa prisão em que uma menina era submetida ao ritual criminoso de uma cela promíscua? Quem preserva o cidadão? A Justiça? A força? O poder? São todos juntos?
Então, o que ocorreu com essa menina, cuja condição humana foi negada sob todos os aspectos, estando sob a guarda da Justiça? O que ela experimentou não foi apenas um abandono fortuito numa prisão, mas um tipo de morte. Mataram sua dignidade, violentaram sua subjetividade, aniquilaram sua história ainda criança. Qual é o limite do mal, perguntam-se os filósofos, para que se possa entender o bem?! Até quando os humanos se destruirão?!
Nesse episódio que repete a história de uma vida de escassez, temos que nos perguntar: a quem serve a Justiça? Quem é o aplicador da lei? A quem cabe guardar os costumes? É o Estado e seus agentes? É o cidadão comum? São as instituições sociais e políticas da sociedade civil?
A menina esquecida pode se tornar um sinal de que algo não vai bem na nossa jovem democracia: o registro de que a igualdade de oportunidades não está sendo acolhida pela Justiça. Que fazer? Uma revolução ética, um reiterado grito a favor da moralidade pública, para que nenhum agente do Estado arrogue para si o julgamento de debilidade sobre uma menina que foi entregue à Justiça para ser recuperada, não para ser violentada. Quem deve ir aos tribunais?


TARDES DE CHUVA

Eu tenho às vezes no olhar tardes de chuva


Esse verso da canção de Aldir Blanc e João Bosco, produzida no âmago de uma inspiração que busca evidenciar o romantismo da cultura nacional, traz à minha reflexão várias modulações da vida, já exaltadas no cancioneiro deste país-continente.
Lembro com nostalgia, mesclada por certa ingenuidade, das minhas tardes missioneiras, em Santiago. Da casa dos meus pais, das frutas saborosas sem qualquer adubo tóxico, do leite tirado diretamente da fonte natural, sem nenhuma soda cáustica, dos animais andando livres por seus lugares, sem as regulações da cidade grande. Ali era possível, naquele pedaço de mundo, ter-se a dimensão do horizonte sem fronteiras e pensar no Infinito.
E quando me vem à mente versos da canção, eu sinto, como os poetas, que há no meu olhar tardes de chuva.
É possível experimentar esse sentimento, quando as notícias dos jornais nos açoitam diariamente com todo o tipo de neurose, de aniquilamento, de crueldade. Desde o assassinato de um pequenino entregue aos cuidados de pessoas despreparadas, passando pela violação de outra menina (entregue à mão de pessoas formalmente preparadas), mas que, diante da debilidade de um ser humano, não hesitam em se tornarem mais fortes. Não bastasse essa vilania de Sul a Norte, temos uma nova mostra do circo que tomou conta do parlamento nacional, ao vermos a escassez de moralidade pública e a abundância da improbidade no que se refere à administração da esfera pública. O que era para ser administrado privadamente tornou-se público e o que exige a transparência pública, como no caso do Detran/RS, é negociado privadamente.
Eu tenho no olhar tardes de chuva, pois ainda no meu país não conseguimos dar dignidade aos profissionais da educação e nem tratar com respeito a saúde pública, quando inúmeras pessoas morrem vítimas da dengue.
E meu olhar se torna mais úmido ainda, quando ouço e vejo a notícia inacreditável de que uma criança entregue aos cuidados do pai para viver mais um domingo de sua vida acaba sendo encontrada no gramado de um edifício, jogada que fora por uma janela. Como entender a banalidade do mal, de que fala H. Arendt que tomou conta do ser humano nesse episódio de barbárie?!
Mas, entre tantas fraturas no tecido social, sou capaz de me emocionar com o gesto simples das pessoas que se ocupam em serem solidárias face à escassez e que lutam com galhardia, sem se locupletarem dos cofres públicos. São elas que poderão agir para que este país se torne uma nação igual para todos e que o bem e a justiça se encontrem nas ruas das pequenas e das grandes cidades. A chuva do meu olhar sentirá o sinal da alegria.

MEU RELATO

28 de abril de 2008, 11:20 hs

Eu renasci, depois da pancada que levei no caminho para a Unisinos, quando um ônibus bateu no meu carro. Senti meu corpo tonto, batido, e eu mesma sem entender o que havia ocorrido. O impacto foi tão inesperado e violento como um ritual de barbárie, quando a solenidade difusa penetra na pele e impede a intensidade do real, na sua expressão mais dura. Olhava para o ônibus que me batera e sentia a estranheza que Camus percebeu e sentiu diante do absurdo da vida.
Saí sem entender o que meu corpo sentia, meus óculos foram jogados ao chão do carro, em decorrência do impacto, e a chuva intensa, opaca, terrível, se misturava com minhas lágrimas, às quais eu não tinha intimidade, apenas dor. Quando consegui descer do carro, meus pés adentraram numa poça d’água e eu derrubei o celular, o instrumento que me tiraria daquela solidão. Tento fazer ligações para minhas filhas e nada ocorre, pois o chamado no momento não foi atendido e eu, aflita no meu instante eterno, pensava; porque ocorreu comigo? Quando consegui falar com elas, meu pranto convulso permitiu que eu me entendesse com os elos da minha vida e me sentisse confortada.
Eu estava atenta, segura, compenetrada no que ia fazer, cumprir a tarefa final, presidir a Banca de Defesa do meu orientando, e estava feliz por mais uma etapa vencida na vida cúmplice de mestre e aprendiz. A minha vida toda foi assim, foi ao magistério que me dediquei e nele realizo uma das dimensões da minha humanidade; agora, eu estava ali à espera de minha filha, do socorro, de tudo.
A chegada dos meus foi meu alívio, é a minha vida se prolongando nos que gerei e nos que foram gerados pelo que gerei. É isso! Gerei filhos e idéias e colho esse resultado com muita ternura e alegria.
A vida é uma espera e a gente aprende isso em situações cruciais. Depois, levada ao Posto de Atendimento, mais espera de quase três horas para ser atendida e medicada. Enquanto isso, eu pensava em tudo, em todos, no necessário e no contingente, mas não conseguia me libertar do barulho do ônibus que bateu no meu carro e da dor no meu corpo.
A atenção dos colegas comigo, o respeito pelo meu trabalho, se fizeram presente nos telefonemas e nas atitudes de gentileza e solidariedade. Bom saber e ouvir as falas dos que estão próximos de nós.
Mais uma lição, mais um desafio, o horizonte da vida se amplia, pois é possível acreditar na gratuidade do que se faz, na medida em que plantamos, nem sempre colhemos, mas é importante continuar...
Cecília Pires