9.11.16

Conjeturas e conjunturas



Percorro a Praça da Alfândega, detenho-me nas diferentes Bancas de Livros, vejo as produções acadêmicas, literárias, científicas, religiosas, militares, infantis. Contos, crônicas, teses, divulgação de invenções, relatos de viagem, poemas, romances, análises acerca do clima e da crise ambiental, livros escritos no calor da conjuntura política e econômica, biografias de heróis e tiranos e em tudo isso conjeturo sobre o sujeito da espécie, o escriba que viveu, pensou, escreveu, compartilhou suas experiências, visões, compreensões e, portanto, sabe um pouco de si, dos seus parceiros, da humanidade e do planeta em que vive.
Chego em casa e no prosseguimento das leituras que fiz e farei, um breve intervalo para as notícias. Eleições, escolhas, campanhas, vitórias, derrotas. Em algumas imagens dá para fantasiar sobre os personagens dos romances e das crônicas e relacioná-los com os protagonistas da cena política. Quem suborna mais? Quem se coloca mais à venda? Quem tenta passar uma imagem de decência e ética para consumo público? A quem interessa o resultado das urnas eleitorais em cujo âmago foi depositado o desejo da população? Estaremos a viver um conto de fadas ao avesso? A madrasta da Branca de Neve ficou boa? O Chapeuzinho Vermelho subornou o Lobo Mau? Por quantas moedas?
E volto à leitura. Releio um Machado de Assis irônico e mordaz com seus leitores, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, busco informações sobre o Debate Ambiental, na fala dos especialistas, analiso as questões destacadas por Bauman em Medo Líquido e em tudo isso a conjetura e a conjuntura se unem em meu espírito numa espécie de conspiração para testar meu equilíbrio de cidadã e companheira de viagem da humanidade. A conjetura me leva a divagar na reflexão acerca da capacidade humana de pensar e agir. O que vejo nesta Feira e vi em outras tantas é o resultado da inteligência humana, reunindo toda uma produção significativa desde que o sujeito da palavra quis se estabelecer no mundo, como um ser de pensamento, de linguagem e de ação. Um sujeito que busca a paz, que faz a guerra, que constrói muros, que abre caminhos desde que surgiu no mundo como espécie homo.
A conjuntura me traz para o cenário atual e vejo um sujeito discursando de modo conciliador, já vitorioso, quando ao fazer sua campanha eleitoral pregou o ódio, a discriminação, o rechaço ao estrangeiro, o desprezo ao pobre e ameaça a quem o ameaçar. De outro lado, como é de costume, a pessoa derrotada aceita as regras do jogo, considera-se simbolicamente vitoriosa e despede-se numa cerimônia de agrado aos seus eleitores.
O mais cruel é quando examino, sem conjeturas, a conjuntura do meu Brasil. Aqui o voto da população não valeu, não foi cumprida a regra do jogo, houve um mandato caçado por um tribunal parlamentar de exceção, onde os dados viciados alimentaram as mentes dos que decidiram romper um processo democrático para justificar uma hegemonia corretiva de rumos da economia nacional. Aí volta a conjetura... Imaginaram que a pessoa no poder estava desviando os caminhos do progresso nacional. E aí o jogo, não o das regras estabelecidas, mas os dos interesses partidários, seccionaram a legitimidade do voto popular. Como fizeram isso? Com que legitimidade se mexe nas conquistas sociais e se produz uma emenda parlamentar corrosiva, capaz de produzir um retrocesso em todos os âmbitos da vida da população?! Aumenta em mim o tônus conspirativo da conjetura e da conjuntura. Que barbárie epistemológica ou emotiva estou a viver! Os olhos dos brasileiros voltam-se para a grande nação da América do Norte, em que as regras estabelecidas pelo jogo democrático são cumpridas, enquanto nesta parte da América do Sul, território Brasil, festeja-se o descumprimento das regras com a maior desfaçatez, sem cerimônia.
Interrompo meu percurso entre os livros, os personagens de ficção e os protagonistas do palco da vida, deixando acalmar meu espírito perplexo, para poder continuar refletindo sobre tudo o que a humanidade escreveu e registrou como experiência histórica. Servirá algo para as futuras gerações? Escreveu-se tanto para que destinatários? Quem se emocionará com a poesia, quem se se sentirá atingido pelo personagem do conto? Quem tentará imitar o herói? A quem sensibilizará o suplício do Planeta? Quem tomará o tirano como modelo? Como entender os discursos vitoriosos, na sua ambivalência? De que modo trabalhar o imaginário dos derrotados, para que não se sintam excluídos da história?
Cesso, recolho-me para tentar vencer meus temores e ratificar o que diz Bauman sobre a necessidade social de “reprimir o horror ao perigo, potencialmente conciliatório e incapacitante”. Os perigos estão aí. Há que enfrentá-los.

10.8.16

SEMENTES




          A ideia de semear talvez seja uma das grandes invenções da humanidade. É um traço que denota uma dimensão de apego às raízes, à terra, à preservação. Traduz, também, o cuidado com o futuro.
          Essas ideias me tomam a mente, com maior ênfase, ao ver os atletas plantando sementes, numa expressiva simbologia, mostrando a todos nós a importância de preservar, cuidando do planeta, da vida, do futuro. Essa tônica do cuidado, eu a olhei como o expressivo significado do espetáculo. Além de todas as belezas criativas apresentadas, pessoas, personagens, cores e história, uma plasticidade verdadeiramente bela, me tocou de modo singular o gesto de plantar as sementes. Houve um pensar a vida em movimento, hoje e amanhã.
          Minhas observações sobre os acontecimentos se movimentam e invadem minha imaginação. Outro espetáculo me motiva a pensar. Não tem toda a plasticidade e a beleza da festa de abertura das Olimpíadas, mas não é menos importante.  Refiro-me às falas, ao trabalho, às manifestações das pessoas que postam nas redes sociais seu envolvimento, em defesa da democracia. É um outro modo de semear, de plantar, de cuidar do hoje e do amanhã.
          Se a semente for plantada em terra boa, ela dará frutos, já nos ensinou o Evangelho. A terra daninha, plena de pragas, pode apressar a morte da semente. Julgo importante, neste momento brasileiro, semear novas sementes, preparar a terra para o cultivo de ideias necessárias para defender a vida democrática. É possível que se enfrente borrascas e terremotos capazes de ameaçar a frágil semente da democracia, na tentativa de impedir o crescimento da planta. Os artifícios de toda ordem estão aí numa atitude vil, ocupados na morte da semente.
          Sementes, terra boa, pessoas cuidadosas são condições imprescindíveis para continuar a humanidade. Semear, cuidar, estar atento ao avanço das ervas daninhas são tarefas urgentes para a continuidade da vida, tanto biológica, quanto social.
          Que se consiga plantar mais sementes, mesmo quando se encerrarem os jogos olímpicos, pois a democracia precisa ser cultivada, além das regras do jogo burocrático. Sua semente para germinar requer mais que o aplauso. Exige responsabilidade para crescer e frutificar. É um cuidado incessante.


12.5.16

As conveniências dos julgadores

Repetindo o velho filósofo da Renânia, a história se repete, algumas vezes como tragédia, outras como farsa. O Brasil, em sua história, viveu essas situações. Muitas como tragédia, a última foi em 1964, com o golpe civil-militar. Como farsa, estamos vivendo, agora, em 2016, quando enfrentamos o golpe parlamentar, em que não se evidenciam os crimes da Presidente acusada, embora os ritos dos julgadores se cumpram, no formalismo do uso da lei e da Constituição. As ações humanas exigem interpretações. E essas, as interpretações, estão eivadas de subjetivismos. Se não se sustenta a tese do crime de responsabilidade, de que a acusam? Os argumentos se sucedem e nos vemos no meio dessa confusão retórica em que serve a afirmação de Karl Marx, ao falar dessa repetição sob a forma de tragédia e farsa, nos meandros da história.
A quem compete selar o destino dos humanos? Aos juízes togados ou aos juízes eleitos pelo voto popular, como senadores e deputados? A quem cabe julgar? Qual correção de atitudes lhes dá a legitimidade do julgamento? O Homem de Nazaré advertia: “Quem não tem pecado, atire a primeira pedra”. E, então? Estarão os senhores do Congresso Nacional isentos de malfeitos e ações pouco meritórias?! As estatísticas mostram que mais da metade dos parlamentares, seja de uma ou outra casa congressual, tem problemas com seus mandatos, resultantes de acusações no âmbito da justiça. Qual a isenção dos senhores julgadores? Estarão os senhores e as senhoras, que julgam, livres de qualquer preconceito, ressentimento, desejo de vingança ou outros sentimentos vis e comezinhos? Qual soberania de propósitos assiste os que frequentam os tribunais e as tribunas?
Os julgadores começaram a adjetivar seus votos, denominando-os voto moral, voto técnico, voto justo, para dimensionarem as razões de suas decisões, escondidas atrás de biombos ideológicos, divisionistas, em que a questão de classe fica efetivamente ocultada nas suas falas, embora explicitada em suas atitudes. Daí a farsa.
Os senhores e senhoras, que julgam do alto de suas competências, não se importam em ouvir a verdadeira voz do povo, do qual eles se sentem tradutores das ideias e dos sentimentos. A eles interessa tão somente falarem do que entendem acerca do que ouviram das reivindicações populares, como a insatisfação, o custo de vida, o chamado clamor das ruas, tudo para mascarar as verdadeiras intenções e interesses dos que julgam.
A acusação de qualquer tipo de contravenção legal requer a tipificação do crime. Pois bem, de que acusam a Presidente? Que crime teria ela cometido? Em que ordenamento jurídico se baseou a peça acusatória, que remete a Presidente eleita ao afastamento do poder conquistado pela voz das urnas? O contrato social prevê que o resultado das urnas confere ao vitorioso a condição de gerenciamento do poder executivo, segundo as leis da República. Isso não basta? Talvez, mas na medida em que, para haver um bom desempenho, faz-se necessário saber articular, transigir, trocar com os membros do Congresso, os quais em função dos seus interesses aprovam ou desaprovam os atos da Presidência República, não sem que antes colher resultados materiais para os seus condomínios eleitorais.
 Há que serem resguardadas as definições de ética, moral, justiça e democracia, que perdem, por vezes, seu sentido substantivo, quando são usadas de forma solerte pelos julgadores, que pretendem se manter na zona de conforto e fazer uso público de motivações individualistas e partidárias, ao invés de estarem voltados para as demandas da sociedade civil, nas suas mais diversas aparições de classes sociais e frações de classe.
Sobre tudo isso merece destaque a forma como as conveniências aparecem no cenário político, em que sem disfarces os arautos da “moralidade pública” interferem no jogo do poder, demonstrando uma consciência desgastada e maculada pelos adjetivos usados nas falas, numa flagrante atitude desrespeitosa a quem está sendo acusado, chegando à vulgaridade.
Do que resta, cabe-nos o anúncio e a denúncia. O anúncio de que as vozes das urnas, como as vozes das ruas, estarão exigindo o respeito às decisões democráticas, no momento obstaculizadas pela farsa. A denúncia se sustenta no despreparo dos poderosos aliados ao grande capital, que não aceitaram o resultado das urnas e desde os primeiros momentos decidiram que não permitiriam que a Presidente eleita cumprisse seu mandato até o final. 
Até mesmo o uso efetivo do dinheiro ocorreu ao pagarem os serviços da advogada para que fosse feita uma peça acusatória. Valeu mais do que Judas, que vendeu o Mestre por 30 dinheiros. Desta vez não houve entrega do mestre, pois este estava junto, apenas o pagamento de 45 dinheiros àquela que aceitou denunciar, utilizando a montagem cênica do aparato legal. Essas conveniências dos denunciantes, acusadores e julgadores embaça a face da República, já marcada em sua história pela tragédia e pela farsa.

18.4.16

Sobre o Imaginário Popular

A forma como se articularam os discursos em torno das razões dos votos a favor do impeachment, expressas na votação de ontem, no que se chama Câmara dos Deputados, expressa o exercício de uma consciência conservadora, que prejudicou a compreensão do verdadeiro significado da democracia.
O fundamento dos que furiosamente declaravam seu voto passava longe até mesmo das questões legais, que poderiam justificar a cassação de um mandato concedido pelo voto popular. Não passavam tais pronunciamentos nem mesmo pelo crivo da crítica de uma democracia cuja representação deixa a desejar. Não. O ódio vociferante voltou-se contra uma sigla partidária e uma pessoa, no caso uma mulher, a quem eram destinados o deboche, a ironia medíocre e o desrespeito com o adversário, elementos que denotam um despreparo no exercício da ação política e uma baixa densidade de conhecimento acerca do exercício da função pública, por parte de quem está na atividade parlamentar.
Quando mais não seja, ainda ouviu-se homenagens aos ícones familiares, tornando a ação política uma ação privada, como se fosse uma festa ou uma reunião entre amigos, muito distante do objeto em questão; no caso, faltou a seriedade devida a um julgamento político, ainda que sem suficiente clareza e amparo legal.
E então, pensa-se em como funciona o preparo ou o despreparo do imaginário popular?! Todo sistema de crenças, de normas, de valores, de princípios, situações de reconhecimento ou de negação aparecem no imaginário popular, sob formas hierárquicas. E foi isso que se viu na sessão da Câmara dos Deputados, quando eram evidenciados pensamentos que defendiam torturadores, evidenciavam preconceitos e, sobretudo, diziam estar falando em nome dos que os elegeram e dos costumes dos lugares de onde vieram. Mas, permanece a questão: qual Democracia e Pátria estava sendo defendida? Aquela que tentou resolver o problema das desigualdades e injustiças sociais ou a que demonstrou o limite entre uns e outros, numa clara atitude de que a alguns cabe os benefícios da lei e a outros as punições?!
Há um lugar no imaginário popular, ali representado, onde se constrói uma espécie de proteção ou refúgio para não enfrentar as verdadeiras compreensões de direitos e deveres. O que valeu para governos anteriores, não vale para os atuais. Combate-se a corrupção de uns e convive-se com a corrupção dos parceiros, pois teriam significados diferentes!! Alguém deve ser caçado e outro pode presidir um julgamento, sem o menor tremor! Esses estereótipos se prestam a manipulações estimuladoras do populismo e do clientelismo, como expressões políticas da representação parlamentar.
As relações de igualdade e/ou desigualdade se estabelecem como uma cultura política na esfera do popular aqui nomeado a todo instante para acobertar uma consciência conservadora, que não suporta mudanças que possam colocar em perigo privilégios de classe. Até mesmo o uso político da religião foi sobejamente justificado. Em nome de Deus e da Lei, mata-se o cidadão.
Essa racionalidade falaciosa ornamenta a prepotência, a serviço de uma cumplicidade com o popular para melhor fragilizá-lo e destruí-lo. A sedução funciona como uma estratégia de cerceamento da racionalidade crítica, expressa nas falas de homens e mulheres envolvidas nos estreitos limites de uma ação política individualista e rancorosa. É uma face do autoritarismo que se torna eficaz nos seus objetivos, especialmente quando funciona para garantir privilégios.
Esse mundo de significados espelha-se na imagem de uma conduta oblíqua em que funciona melhor como dominação do que como libertação. Produz-se um certo bem-estar moral nas propostas ofertadas ao povo e regozija-se no “banquete” servido para comemorar o abate da caça. Desta forma se dá o rito do imaginário popular, comandado por seus menestréis.
Por mais que doa um revés de luta e o canto substitua-se pelo pranto, ainda assim, sabe-se que Alguém deve morrer, como diz o poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias: “Corram livres as lágrimas que choro. Estas lágrimas, sim, que não desonram”.